Aquífero Guarani: uma reserva de água para o futuro?
Aquífero Guarani: uma reserva de água para o futuro? Entrevista especial com Cinthia Leone dos Santos
“O Aquífero Guarani é visto como uma reserva de água para o ‘futuro’, mas ele já é intensamente usado no Brasil há muitos anos, e o pior, de maneira irresponsável, com pouca fiscalização de poços clandestinos, poluição e exploração acima da capacidade de recarga das regiões”, afirma a jornalista.
Imagem: http://bit.ly/1S0lt6d |
O acordo que regula a utilização das águas doAquífero Guarani, assinado entre Argentina,Uruguai, Paraguai eBrasil, “é o primeiro tratado do mundo sobre águas transfronteiriças assinado sem que um conflito bélico ou diplomático estivesse em curso” e “se destina, sobretudo, a determinar a titularidade do Aquífero Guarani, ou seja, dizer quem são os únicos donos dessa reserva”, informa Cinthia Leone dos Santos em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Autora da dissertação de mestrado intitulada “Aquífero Guarani: atuação do Brasil na negociação do acordo”,Cinthia explica como aconteceram as negociações entre os quatro países, incentivadas pelo Uruguai. Segundo ela, “o Brasil foi membro que dificultou as negociações por temer ingerências dos outros três envolvendo a gestão de sua parte do Aquífero”.
Cinthia pontua que entre os pontos fracos do acordo, “o documento se dedica pouco à proteção ambiental do Guarani e muito mais a dizer quem são os donos e como eles podem dispor da água”.
Cinthia Leone dos Santos é graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental – Procam, da Universidade de São Paulo. Atualmente é membro do Grupo de Pesquisa Laboratório de Geografia Política – GEOPO e assessora de imprensa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Confira a entrevista.
Imagem: Jornal GGN |
IHU On-Line – Em que consiste o acordo que regula a utilização das águas do Aquífero Guarani? Quando e por quais razões ele foi elaborado?
Cinthia Leone dos Santos – Ele é o primeiro tratado do mundo sobre águas transfronteiriças assinado sem que um conflito bélico ou diplomático sobre ele estivesse em curso. Ele se destina, sobretudo, a determinar a titularidade do Aquífero Guarani, ou seja, dizer quem são os únicos donos dessa reserva. O documento também exclui a possibilidade de que disputas sobre o Guarani sejam levadas ao tribunal de Haia ou qualquer outro fórum internacional, indicando que essas desavenças só poderiam ser discutidas em um fórum próprio.
IHU On-Line – Como se deu a negociação deste acordo? Pode comentar e explicar seus principais momentos?
Cinthia Leone dos Santos – No momento em que as negociações sobre o acordo foram iniciadas, havia um debate na comissão de direito internacional da ONU sobre a titularidade dos Aquíferos transfronteiriços. Uma corrente de diplomatas defendia que essas reservas fossem consideradas águas internacionais. A motivação inicial para a criação do acordo foi, então, fazer um documento que se opusesse a essa visão e antecipasse uma legislação sobre o tema. Por isso a titularidade e a determinação de quem pode legislar sobre o Aquífero foram os pontos fundamentais do documento.
IHU On-Line – Como se deu a atuação do Brasil e dos representantes do Uruguai, Argentina e Paraguai na negociação deste acordo? Que pontos cada um dos países levantou durante a negociação?
Cinthia Leone dos Santos – O Uruguai foi o país que buscou convencer os demais sobre a necessidade do acordo. A Argentina estava excessivamente preocupada com possíveis danos que uma parte poderia causar à outra e as disputas decorrentes disso. O Paraguai não teve uma atuação tão expressiva. O Brasil foi membro que dificultou as negociações por temer ingerências dos outros três envolvendo a gestão de sua parte do Aquífero.
Localização do Aquífero Guarani Imagem: www.movimentocyan.com.br |
IHU On-Line – Que informações técnicas subsidiaram o acordo?
Cinthia Leone dos Santos – As informações técnicas vieram sobretudo do projeto SAG, realizado por estudiosos dos quatro países e financiados pelo Banco Mundial. Com esse estudo foi possível saber, por exemplo, que a retirada de água em um ponto do Aquífero não afeta a disponibilidade em outro ponto, no país vizinho. Esse tipo de dado foi fundamental para que se pudesse ter um tratado sobre o Guarani.
IHU On-Line – Quais são os pontos fortes e os pontos fracos do acordo?
Cinthia Leone dos Santos – Os pontos fortes foram esses que já destaquei. O ponto fraco é que o documento se dedica pouco à proteção ambiental do Guarani e muito mais a dizer quem são os donos e como eles podem dispor da água.
IHU On-Line – Por que Argentina e Uruguai já ratificaram o acordo, enquanto Brasil e Paraguai ainda não?
Cinthia Leone dos Santos – Argentina e Uruguai se esforçaram pela obtenção do acordo, conforme os documentos analisados pela minha dissertação. O Paraguai, para quem o tema a princípio era neutro, viveu após a criação do tratado uma grande turbulência política, com um golpe civil que destituiu o presidente e fez com que o país fosse expulso do Mercosul. Essa expulsão indignou os que tomaram posse por meio do golpe, e assim eles passaram a rejeitar no Congresso diferentes projetos de lei relacionados a países do bloco como forma de retaliação, e entre esses projetos estava o acordo do Guarani. Ou seja, a não ratificação por lá se deu pela contaminação do tema pela pauta política. Como, desde então, a democracia paraguaia não se recuperou plenamente, não houve espaço para uma nova discussão do tema.
No Brasil, o que podemos é especular. Há quem defenda que o Congresso brasileiro não teve tempo para levar o acordo à votação, mas sabendo que a diplomacia brasileira considera a negociação do acordo um precedente negativo, como mostram as correspondências diplomáticas e estudos sobre o episódio feitos pelo próprio Itamaraty. Pode ser que o Ministério das Relações Exteriores – MRE tenha recomendado a não ratificação. Mas, de novo, isso é especulação.
“Se fosse ratificado, o acordo criaria um órgão capaz de centralizar dados científicos e de gestão, inclusive para capacitação técnica de agentes públicos” |
IHU On-Line – Quais são os desdobramentos políticos e ambientais desse acordo?
Cinthia Leone dos Santos – Se fosse ratificado, o acordo criaria um órgão capaz de centralizar dados científicos e de gestão, inclusive para capacitação técnica de agentes públicos. Essa seria a principal consequência do ponto de vista ambiental. No campo político, os documentos mostram que os diplomatas brasileiros veem no episódio precedente negativo no que diz respeito à ingerência dos vizinhos. Ou seja, ele pode influenciar negativamente futuras discussões sobre recursos naturais transfronteiriços.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Cinthia Leone dos Santos – O Aquífero Guarani é visto como uma reserva de água para o “futuro”, mas ele já é intensamente usado no Brasil há muitos anos, e o pior, de maneira irresponsável, com pouca fiscalização de poços clandestinos, poluição e exploração acima da capacidade de recarga das regiões.
Durante as negociações, o Brasil demonstrou que teme ingerência estrangeira sobre sua porção do sistema Aquífero Guarani, incluindo uma desconfiança contra os outros donos do Guarani. Ainda sobrevive uma ideia de que alguém quer tomar nossa enorme porção de água, mas a grande ameaça ao Aquífero hoje é a nossa própria gestão irregular.
Por Patricia Fachin
(EcoDebate, 16/03/2016) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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